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Num período histórico dilacerado pelo embate de culturas e por contradições socio-políticas-económicas, como foi a segunda metade do séc. XVIII (em que se presencia o agonizar de Idade Moderna e o germinar de conceitos que marcariam a Idade contemporânea), estertora, amortalhado na aguarela suave do pastoralismo, o mito da Idade do Ouro. O árcade vai erigir na Natureza a utopia de um cosmos sem conflito – belo, harmónico, marcado pelo equilíbrio. Espelho do cosmos, a Natureza árcade oferece-se ao homem como fonte inesgotável de ensinamento. Naturalizar-se, o homem significa integrar-se na harmonia cósmica, fechando uma cadeia cujos elos são o
Universo, a Natureza, o Homem. É uma tentativa de recuperar, sob outros enformes, a Grande Cadeia do Ser renascentista, rompida por volta de 1520 com a crise que varreu a Europa e passou para os contemporâneos com o nome de anti-Renascimento. Consequência da crise aludida? O Universo cuja configuração aristotélica-ptolomaica Copérnico fizera ruir, deixou se ser concebido como harmonia e ordem; a crença optimista em uma perfeita adequação entre o Real e o Ideal, o divino e o humano, a razão e a natureza, abala-se em choque com a verificação do desconcerto e de sem razão de tudo, última floração estética de uma visão do mundo, saudosa de um universo harmoniosamente construído e estruturado, o arcadismo forceja por sua reconstrução. Um bom exemplo de utopia arcádica de um cosmos regido pela harmonia e pelo equilíbrio, vamos encontrá-lo no soneto "Já se afasta de nós o Inverno agreste" de Bocage:
JÁ SE AFASTOU DE NÓS O INVERNO AGRESTE
ENVOLTO NOS SEUS HÚMIDOS VALORES;
A FÉRTIL PRIMAVERA E MÃE DAS FLORES;
O PRADO AMENO DE BONIAS VESTE
VARRENDO OS ARES O SUBTIL NORDESTE
OS TORNA AZUIS; AS AVES DE MIL CORES
ADEJAM ENTRE ZÉFIROS E AMOES
E TOMA O FRESCO TEJO A COR CELESTE.
VEM, Ó MARÍLIA, VEM LOGRAR COMIGO
DESTES ALEGRES CAMPOS A BELEZA,
DESTAS COPADAS ÁRVORES O ABRIGO.
DEIXA LOUVAR DA CORTE A VÃ GRANDEZA:
QUANTO ME AGRADA MAIS ESTAR CONTIGO,
NOTANDO AS PERFEIÇÕES DA NATUREZA!
Mesmo após uma rápida leitura percebe o leito que o poema deve ser dividido em duas partes: a primeira, correspondente aos dois quartetos, trata da Natureza, constituindo-se num quadro eminentemente descritivo: a segunda, englobada nos tercetos, consiste num apelo que visa a integração do ser na Natureza. A postura contemplativa do eu-lírico que inclusive incita a que a companheira o imite na fruição da paisagem, revela a função que exerce a Natureza: a de um espelho que vai reflectir, como veremos, as perfeições de um Cosmos marcado pelo equilíbrio.
Por sinal, tal equilíbrio já se manifesta na primeira estrofe que descreve a sucessão harmoniosa que preside ao ciclo das estações. Note-se, de imediato, que estamos diante de duas entidades antitéticas.: Primavera e Inverno. Enquanto que a primeira se caracteriza positivamente pela fertilidade e colorido, a segunda, a segunda é definida pela desolação e esterilidade. Mesmo os verbos que definem a acção de uma e outra conotam a polaridade fértil/estéril. Veja-se, por exemplo que a acção do Inverno é transitiva (afastar-se). Opõe-se, portanto, à acção transitiva da Primavera – uma acção que se exerce para fora, em benefício do espaço que se enfeita, fecundado de boninas. Facilmente perceptível ao nível semântico, a antítese fertilidade/esterilidade manifesta-se mais subtilmente ao nível fónico. As vogais fechadas escurecem e envolvem de soturnidade o Inverno, cuja frialdade incómoda e cortante cicia na profusão de sibilantes. Por sua vez, maior variedade vocálica (e de som aberto) sugere a riqueza e o cromatismo da Primavera que se instala.
Merece ainda a maior atenção nesta primeira estrofe, os factos de os valores positivo e negativo que a Primavera e Inverno encarnam não serem projecções da subjectividade do eu lírico. Primavera e Inverno são, respectiva e intrinsecamente, fértil e estéril. Se há superioridade de uma sobre a outra, isso se deve a factos intrínsecos a cada uma. No ciclo das estações, cada uma cumpre a sua função vital e necessária. Sob este aspecto, Inverno e Primavera equivalem-se, nivelados pela sábia mão do ciclo vital. Dois segmentos coordenados, um a tratar do Inverno e outro a tratar da Primavera, dão a devida importância a outra estação, nivelando-as. Insinua-se já, nessa primeira estrofe, a harmonia o equilíbrio que caracterizam a Natureza, reflexo de uma perfeita e engrenada máquina cósmica. Considere-se que a possibilidade de um conflito ou situação conflitual anula-se no sábio regime que governa a sucessão das estações: a esterilidade e a desolação do Inverno cedem lugar à fertilidade e colorido da primavera.
Esta azeitada engrenagem cósmica comprova a sua perfeição na segunda estrofe. De início urge notar que Bocage nos oferece uma aguarela pastoril segundo as regras convencionais do Arcadismo. Eis-nos diante de uma Natureza bela, colorida, suave, amena, maravilhosa. Em suma, adentramos o jardim das delícias que a moda setecentista vestiu, arrimou a um cajado e chamou "locus amœnus". Toda envolta em azul, a Natureza rescende a tranquilidade: paisagem épica acariciada pelo sopro ameno e subtil do Nordeste. Em pacífica coexistência, seres naturais (aves de mil cores) e mitológicos (Amores) preenchem o espaço entre água e céu com movimentos suaves (adejam). Não devem quebrar paz e harmonia aí instaladas. Tamanha é a tranquilidade que desfila deste cromo (ainda caro nos nossos sonhos domingueiros de citadinos esfalfados e saudosos de um paraíso) que por pouco se nos escapa a presença de polaridades. Verticalmente antitéticos são água e céu; todavia, os extremos ligam-se num fusionismo capaz de causar inveja a qualquer barroco: "toma o fresco Tejo a cor celeste". A imagem espectaular que emerge daí, confundindo e unindo os extremos numa perfeita unidade, acentua ainda mais a noção de equilíbrio e harmonia que emanam da máquina cósmica. Mas não pára aí a superação de possíveis conflitos. A antítese ser natural (aves) "versus" ser mitológico (Amores), é também medida por uma entidade a um tempo natural e mitológica: Zéfiros, personificação mitológica do vento do Ocidente. Podemos desejar mais acabada "áurea mediocritas" do que a figurada por esta Natureza concebida como uma unidade harmónica, apaziguada e sem conflitos de qualquer ordem ou espécie? A contemplação de uma tal Natureza só então pode ensinar-nos paz, harmonia e equilíbrio. A naturalização do homem, isto é, a sua integração neste cenário ameno, significa apropriar-se de todas as qualidades da mediania e ordem que a Natureza, este espelho cósmico ensina e concretiza as suas manifestações.
Explica-se, pois, que a segunda parte do nosso poema consiste em que Marília venha também comparticipar das noções apreendidas (e aprendidas) pelo "eu-lírico" no contacto e na contemplação da Natureza. Aliás, a realização amorosa perfeita surge como necessária participação e vivência dos ensinamentos que a Natureza veicula. Chamada a integrar-se naquela harmonia natural, dele a amada deve participar, para que a fusão amorosa seja também perfeita. A natureza como mediadora da relação amorosa, há-de ensinar a paz, a harmonia, o equilíbrio infundindo nos amantes a áurea mediania existencial de um amor vivido sem paixões desenfreadas. Estóica é a suprema felicidade amorosa que consiste na superação de apetites e extremos que só poderiam comprometer a relação harmónica e vital entre Homem, Natureza e Cosmos. É em nome desta moderação estóica que o "eu-lírico" define o amor que Marília suscita como "agrado".
Estas verdades existenciais, que a Natureza reflecte e figura, pois lhe são imanentes, justificam o "eu-lírico" considerá-la"bela e útil". Beleza e utilidade identificam-se, são uma e a mesma coisa, identidade e equivalência sugeridas pela perfeita simetria sintáctica dos versos:
VEM, Ó MARÍLIA, VEM LOGRAR COMIGO
DESTES ALEGRES CAMPOS A BELEZA,
DESTAS COPADAS ÁRVORES O ABRIGO.
Bela porque útil, útil porque bela, a Natureza alardeia equilíbrio e serenidade, cernes da mediania existencial que todo o árcade anelava, em sua fuga ao burburinho, caos e sobressaltos da vida citadina:
DEIXA LOUVAR DA CORTE A VÃ GRANDEZA:
Volta a insinuar-se, no verso citado, o desejo de uma perfeita integração de gosto e existência entre amante e amada, para que o amor seja pleno e realizado. Marília está sendo chamada a integrar-se na Natureza porque ainda não lhe vivenciou os ensinamentos estóicos. A cidade com sua "vã grandeza" assedia a inocência primitiva de Marília com o seu encanto de sereia. A cera que o "eu lírico" quer pôr-lhe nos ouvidos é o desfrute da mediania existencial que só o campo oferece e ensina:
QUANTO ME AGRADA MAIS ESTAR CONTIGO,
NOTANDO AS PERFEIÇÕES DA NATUREZA!
Ao cabo, o convite reduz-se ao cumprimento do supremo ideal arcaico: integrar-se na Natureza, vivenciando-lhe os sábios e imanentes ensinamentos de paz, harmonia, e equilíbrio, será sujeitar-se ao domínio de um Cosmos visionado como perfeito e equilibrado, uma vez que a harmonia cósmica se instalou e cumpriu na Natureza.
Esta utopia não consegue esconder o reverso da medalha; antes, revela-se de modo flagrante. O anseio dos árcades em evadir-se do seu tempo, condição social (burgueses fantasiados de pastores ou pescadores) e até mesmo identidade (trocada por pseudo: mimos gregos e pastores); desnuda a insatisfação que lhes inspirava o setecentismo. Uma vez mais problema sociopolítico-económicos mostravam o desconcerto do mundo e a sem razão de tudo. Assistiam estes pastores nostálgicos aos estertores de um largo período histórico que, nascido da segunda metade do séc. XV, viera sedimentando por quase trezentos e cinquenta anos uma grande utopia metafísica: a concepção de um Universo como perfeita e harmónica Cadeia do ser – mito reincarnado librariamente no Renascimento e perseguido sempre (se bem que sob outras formas e retóricas) por quinhentistas barrocos e árabes. Num derradeiro gesto de desespero, os poetas do Arcadismo (e Bocage é, como vimos, um bom exemplo, pelo menos enquanto esteve manietado pela camisa de forças árcade) hão-de assumi-lo e concretizá-lo, não importa seja o analisado mito perpetrado "pela mão do fingimento". No mundo do faz-de-conta tudo é possível. Até mesmo as utopias mais descabidas.
VOCABULÁRIO
ABC…
ADEJAR – bater as asas para voar; voejar; esvoaçar; librar as asas.
ANELAR – desejar ardentemente.
ANTITÉTICO – que contém antítese.
CERNE – parte interior e mais dura do lenho da árvore.
DIÁFANO – que deixa passar a luz sem deixar distinguir os objectos; transparente; muito magro.
ESPECULAR - relativo a espelho; diáfano; diz-se dos minerais compostos de lâminas brilhantes.
ESTOICISMO – austeridade; rigidez de princípios morais.
INTRANSITIVO – diz-se dos verbos que exprimem estado ou acção que não passa do sujeito.
LIBRAR – equilibrar, sustentar-se no ar; pairar.
LIBRARIAMENTE – equilibradamente.
LÍRICO – relativo à lira; que se cantava com acompanhamento da lira; que canta os sentimentos pessoais do poeta; sentimental; poeta que cultiva a poesia lírica.
LOGRAR – fruir, possuir; conseguir; burlar.
METAFÍSICA – transcendente, abstracto.
SEMÂNTICA – relativo à significação.
TRANSCENDENTE – sublime, superior, que dimana imediatamente da razão.
ZÉFIRO – vento suave e fresco; aragem; entre os antigos, vento que sopra do ocidente; vento suave e agradável; mit personificação mitológica do vento do ocidente.
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SITE:
http://autopiaarcadenumsonetodebocage.blogspot.com
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domingo, 11 de maio de 2008
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